Domingo, 05 de Maio de 2024

ARTIGOS Segunda-feira, 09 de Janeiro de 2023, 18:29 - A | A

Segunda-feira, 09 de Janeiro de 2023, 18h:29 - A | A

Bárbara Lenza e Marisa Batalha

'A Dama Dourada' sob o olhar do tempo e dos pincéis de Zeilton Mattos

Carl Gustav Jung nos ensina que símbolos são a melhor expressão possível de algo relativamente desconhecido, representados por imagens, experiências e vivências, que carregam em si um caráter 'mágico' de nos remeter ao labirinto de emoções, que enriquecem nossas memórias.

Assim, é sob este olhar das emoções, que na sala de um charmoso apartamento no centro da cidade de Viena, em 1.907, que se formou uma das mais significativas memórias afetivas de Maria Altmann. Quando debaixo do olhar atento de Gustav Klimt, sua tia Adele Bloch-Bauer era cuidadosamente retratada em traços delicados, enobrecidos e vibracionados pelo óleo sobre tela e ouro. No ano de 1.925 Adele faleceu de meningite.

Em 1.938 Adolf Hitler anunciou o 'Anschluss', o exército alemão atravessou os postos da fronteira austríaca, judeus foram saqueados, presos e enviados para os campos de concentração. Na tentativa desesperada de sobreviver ao nazismo, a família de Maria emigrou para os Estados Unidos para viver uma nova vida. À Maria Altmann não restava alternativa senão enterrar a dor dos seus, juntamente com as cores da infância e a tia Adele, que após a Segunda Grande Guerra passou a “residir” na galeria austríaca Belvedere como “A Dama Dourada'.

Não bastou aos nazistas saquearem sua família, matar os seus amigos, exterminar o seu povo! Adele Bloch-Bauer já não era mais a tia Adele, e sim, um símbolo austríaco, forjado na dor dos seus. Desvelando que somos feitos de memórias, assim, sempre nos reconhecemos enquanto pertencentes na história, por muitas das vezes amarga! Mas quando o amargor da história ultrapassa os limites da nossa força interna, nós o dividimos em pequenas porções de fel que armazenamos em vários poços para que, assim que possível, mergulhemos até o fundo, para nos resgatar.

Caminhando nos labirintos da dor, em meio às lembranças da irmã recentemente morta, tia Adele chama Maria Altmann à revisitar o passado e buscar justiça por si e pelos seus, e foi em posse de uma pequena fotografia e cartas antigas que ela, representada por um advogado inexperiente na área de recuperação de obras de arte, mas também parente de judeus atingidos pelo nazismo, iniciou uma das batalhas judiciais mais famosas da história, que não só foi enfrentada, como também modificada após ser devidamente confrontada!

Maria mergulhou em sua juventude, lançou-se no emaranhado do sistema de Justiça, chegou ao fundo do poço, que é o colo de Deus, e deu-se conta de que mais do que recuperar a tela que trazia a tia já despersonalizada pela leviandade dos maus, caberia a ela dar à tia “um novo lar”, honrando assim o passado de toda a família, limpando um dos seus poços de fel, trazendo novo significado à sua existência e um novo olhar sobre si.

A jovem que outrora fugiu por não ter escolha senão a do próprio apagamento, agiganta-se contra toda a Áustria e, tendo recuperada a força moral que somente quem visita a escuridão sabe descrever, no ano de 2.006 resgata sua tia Adele! Vencendo uma batalha na qual nunca deixou de acreditar, após colocar nas mãos de um advogado, inicialmente, despreparado que acabou se tornando referência na área.

Assim, como a história de Maria, às vezes mesmo sem darmos conta, a vida nos conduz até que dela tomemos consciência para, enfim, nos lançarmos, em nossos poços, determinados a nos resgatar e ressignificar as dores deixadas para trás, ancorados em um símbolo qualquer, que naquele momento, faz sentido.

Com a vitória nos tribunais, tia Adele foi morar na Neue Galerie, em Nova York, e Maria Altmann fez uso dos 135 milhões de dólares adquiridos pela venda da obra, comprando uma nova máquina de lavar louças, destinando grande parte do valor ao Museu do Holocausto localizado na cidade de Los Angeles e distribuindo o restante para a família. Pois a batalha travada nunca se deu por dinheiro, mas pelo resgate das memórias afetivas de Maria. 

Assim, como a história de Maria, às vezes mesmo sem darmos conta, a vida nos conduz até que dela tomemos consciência para, enfim, nos lançarmos, em nossos poços, determinados a nos resgatar e ressignificar as dores deixadas para trás, ancorados em um símbolo qualquer, que naquele momento, faz sentido.

E, hoje, revisitando as obras de Gustav Klimt, e nos agraciando com uma releitura excepcional de 'A Dama Dourada', realizada pelos pincéis de Zeiton Mattos observamos, encantados, algumas peculiaridades ampliadas pelo talentoso artista plástico, para além da bela história de Adele. Em tela, suavemente construída, onde Zeilton lhe traça o perfil com seus pincéis mágicos. E ao [res]significar a obra, refaz o trajeto de sua alma, adornando-a com leves bordados. 

Isto, claro, em meio à presença de alguns de seus elementos. Ao  ocultar, propositalmente, outros que comumente estão presentes em seus quadros que vão para além das romãs. Pois neles ainda coexistem em harmonia perfeita as libélulas, que falam de transformação, a libertária galinha de angola que desfila atrevida, em um universo de cores e flores que asseguram imensa alegria aos seus quadros. Às vezes, em passeios bucólicos e inusitados.

Assim, a 'A Dama Dourada' de Zeilton não surge ao entorno de vasos lindos, ou de cadeiras almofadadas, muitas vezes colocadas despropositadamente em um canto do quadro. Mas se revela em outras nuances, marcada pelo extremo zelo que o artista tem com sua arte, como a delicadeza das mãos, ou o seu olhar lânguido, ao apontar para a alma de um homem que sempre se enamora com as mulheres que moram em suas telas. 

Como Klimt, Mattos e tantos outros inovam e revisitam as imagens que nos marcam no decorrer da vida, e sem que percebam, o amor que guardam pela arte transcende, fazendo com que suas obras alcancem o nosso interior.

Sobre Adele, 'A Dama Dourada', pintada por Klimt e re-lida por Mattos, permanece como expressão de justiça e alcance do (im)possível e carrega em si o caráter “mágico” de nos lembrar que somos do tamanho dos nossos sonhos.

Bárbara Lenza Lana é mãe da Júlia e do Pedro, advogada, professora, pesquisadora e pretensa escritora. Com um breve olhar sobre Zeilton Mattos da jornalista Marisa Batalha.