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ESPORTES Quarta-feira, 09 de Outubro de 2019, 08:45 - A | A

Quarta-feira, 09 de Outubro de 2019, 08h:45 - A | A

Exclusivo: Muricy visita memórias, fala de nova vida e saudade do pai e de Telê

IG Esportes

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SporTV/Divulgação
Muricy Ramalho

O trabalho sempre foi tudo pra mim.

Tudo que eu consegui foi com muito trabalho. Eu tive de trabalhar muito porque eu não abria mão de algumas coisas. Tive de trabalhar o dobro para vencer no futebol.

Meu pai não me viu treinador. Quando ele morreu, eu ainda jogava. Jogava no México e, justamente por estar trabalhando, não pude nem ir ao enterro. Ele com certeza tem muito orgulho de mim.

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Meu pai sempre foi o grande incentivador da minha carreira. Me via jogar quando eu ainda era molequinho, na Vila Sônia, um bairro aqui de São Paulo . Me ensinava a chutar a bola e a construir meu caráter. Virei gente grande quando o abraço dele ainda era muito maior do que o meu corpo.

Nosso ídolo era o mesmo: o Ademir da Guia. Era realmente muito diferente. Elegante e educado dentro de campo. Aí, depois, veja como é a vida: eu fui jogar com o Ademir na seleção paulista. Foi o máximo. Ainda ficamos concentrados no mesmo quarto. A primeira coisa que fiz foi telefonar para o meu pai.

E não era fácil telefonar naquela época. A comunicação era bem complicada. Eu liguei pedindo ajuda pra telefonista, a Angelina, do Morumbi. "Pai, eu estou no mesmo quarto do Ademir. Acredita nisso?". Ele ficou muito orgulhoso. Mas eu queria ter provado mais. Ter deixado ele ainda mais orgulhoso de mim.

Queria que meu pai tivesse visto o São Paulo apostando no filho dele como treinador. Queria que ele tivesse visto o melhor técnico da história do futebol brasileiro me preparando para o lugar dele. O Telê Santana começou a ter problema de saúde e me ensinou tudo antes de partir. Antes de encontrar com meu pai lá em cima.

Meu pai nem chegou a conhecer o expressinho. E já faz mais de 20 anos. O tempo passa rápido demais.

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Site oficial
Muricy Ramalho no São Paulo

Cheguei ao São Paulo com oito ou nove anos. Meu tio me levou pra lá. Achava que eu levava jeito pro futebol. Foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido. A gente se identifica muito com o lugar, com as pessoas. Virei Tricolor de garoto. Levo a imagem daquele tempo no rosto de cada amigo que ficou. Tenho vários que também jogaram comigo. Não passaram com o tempo. Ficaram.

Do Telê eu fui auxiliar e jogador. Mas quem deu a primeira chance foi o Oswaldo Brandão. Isso meu pai viu! Eu tinha meus 16, 17 anos. Fiquei nervoso pra caramba. Tinha muita gente boa lá: Gerson, Pedro Rocha. Só feras mesmo. Não era como hoje que as pessoas estão sempre juntas. Era muito separado, muita gente famosa. Senti demais o começo e depois a gente vai se acostumando.

Só nunca me acostumei com a ideia de perder meu pai e o Telê. Acho que o Telê ficaria satisfeito com o que eu virei. Infelizmente ele não acompanhou tudo, mas viu o título da Conmebol, com o expressinho.

Mas sabe o que mais me dói? Eles não me viram dando a volta olímpica com o Pelé, em 2011, depois do título da Libertadores pelo Santos.

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Divulgação
Muricy Ramalho no Santos

Em 70 eu vi o Pelé dando a volta olímpica com o Rivellino. E eu era o Rivellino nas peladas da rua, na Vila Sônia. Foi a Copa da minha vida. A mais marcante de todas.

E pouco mais de 40 anos, lá estava eu: sem meu pai pra ver. Sem o Telê pra orientar.

Quando fui campeão brasileiro com o Fluminense, em 2010, eu sonhei com o Telê. Foi a única vez que isso aconteceu. Um dia antes do último jogo, o Telê conversou comigo no meu sonho. E foi muito estranho: ele estava rindo bastante, feliz. E ele não era assim, de ficar dando muita risada. Era um aviso.

De manhã, quando acordei, fui confiante.

Graças a Deus as pessoas lembram de mim com carinho. Por todos os clubes por onde passei, sem exceção. Sempre respeitei os lugares, os profissionais. Mas você sabe: o São Paulo tem uma coisa diferente.

Eu voltei pra ajudar o São Paulo a não ser rebaixado em 2013. Nunca negaria um pedido desses. As coisas andaram bem. Mas em 2014...

De repente, o quarto escureceu. Estava em um lugar fechado e cheio de aparelhos, entubado. Não tinha contato com ninguém. Estava isolado com médicos e enfermeiros. Via em uma tela os batimentos do meu coração. Com diverticulite, do nada, estava na UTI.

Minha esposa pediu várias vezes para eu parar. Mas você me conhece: o trabalho sempre foi tudo pra mim.

Na segunda vez, já no Flamengo, prometi: pararia se conseguisse me recuperar. Agora de arritmia.

Consegui. Deixei a carreira. Não foi fácil.

Aliás: nada na minha vida foi fácil, meu filho.

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Divulgação
Muricy Ramalho no Flamengo

Se antes eu ficava nervoso, me estressava, me cobrava... agora é o oposto. É como se eu vivesse sempre em Ibiúna, onde sempre fui descansar. Minha esposa ficou feliz com essa decisão.

Eu não queria terminar como o Telê terminou. Somos muito parecidos, mas priorizei minha saúde. Telê deu a vida pelo futebol. Eu quis manter o futebol na minha vida.

Mas em outra função.

Sou feliz como comentarista do SporTV.

Eu queria ser como o Telê em quase tudo: como pessoa e treinador. Só que eu não queria ficar doente no final da carreia, como ele ficou.

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Nunca esperava ter de parar e comentar jogos. Mas foi um convite e eu tô curtindo bastante. Tá gostoso. Estou no futebol novamente, viajo com o pessoal e aprendo muito.

Técnico nunca mais vou ser. Quem sabe, bem no futuro, um coordenador de alguma coisa. Mas treinador, não.

Tem vezes que a gente precisa parar. Mas gente como eu para sempre pra recomeçar de alguma forma. Se reinventar. Trabalhar.

No dia em que eu morrer e encontrar meu pai e o Telê, lá no céu, vou dizer que senti muita saudade. Tudo que eles me ensinaram eu realmente coloquei em prática.

Ganhei.

E não ganhei sozinho. Ganhei com eles.

Ganhei com quem me fez ganhar a vida.

*Texto de Guilherme Cimatti após entrevista com Muricy Ramalho



Fonte: IG Esportes