Estreando o novo quadro “Entrevista da Semana”, o site O Bom da Notícia conversou com a psicóloga Velma Venturelle sobre os recentes casos de filhos que mataram seus pais. Uma análise profunda sobre vínculos familiares adoecidos, sinais ignorados e a urgência de falarmos sobre saúde emocional.
"O que leva um filho a matar os próprios pais?" Essa pergunta, tão dolorosa quanto urgente, voltou aos holofotes após o chocante caso de um adolescente de 14 anos, no interior do Rio de Janeiro, que tirou a vida dos pais e do irmão mais novo.
O crime reacendeu um debate difícil, mas necessário: o que pode levar um jovem a cometer um crime tão extremo contra a própria família?
Não é a primeira vez que o país se depara com casos assim. E embora sejam estatisticamente raros, causam espanto pela quebra de um dos vínculos mais fundamentais da experiência humana, o laço entre pais e filhos. A pergunta que ecoa nas redes sociais, nas mesas de jantar e nos consultórios de psicologia é: como chegamos até aqui?
O silêncio antes do grito
Casos como esse, segundo especialistas, não surgem de um dia para o outro. Por trás do ato extremo, há quase sempre uma história silenciosa de abandono emocional, traumas não elaborados, relações familiares adoecidas e transtornos mentais ignorados.
Para compreender melhor esse fenômeno, O Bom da Notícia conversou com a psicóloga Velma Venturelle, especialista em saúde emocional de famílias, que nos ajuda a analisar o que pode estar na origem de uma tragédia tão impactante.
Nesta entrevista, Venturelle aborda o que pode levar um jovem a romper com o afeto familiar de forma tão violenta, quais os sinais que as famílias precisam observar e como a sociedade pode reagir com mais humanidade diante de casos assim.
O BOM DA NOTÍCIA (OBN): Velma, o Brasil ficou chocado recentemente com o caso do adolescente de 14 anos que matou os pais e o irmão. Como uma psicóloga, o que chama sua atenção de imediato em um caso como esse?
Velma Venturelle (VV): Em primeira análise, o que mais me chamou a atenção é que tratou-se de um crime premeditado, que pressupõe planejamento. Isso sugeriu profunda frieza por parte do adolescente. Houve ali todo um planejamento, execução e tentativa de ocultação do crime. E isso nos choca por tratar-se de um adolescente de apenas 14 anos de idade. Embora saibamos que o córtex pré-frontal nesta idade ainda está passando por um processo de maturação, a imaturidade neurobiológica jamais justificaria tal ato, o que evidencia um funcionamento psíquico que está muito comprometido, pois a frieza demonstrada e a ausência de remorso não é esperada para este período do desenvolvimento.
(OBN): Na sua experiência clínica, que tipos de padrões emocionais ou familiares costumam aparecer em jovens que desenvolvem esse nível de violência dentro da própria casa?
(VV): Esta resposta exige a análise individual de cada caso. Mas, baseada na minha experiência e também na psicologia do desenvolvimento, quando se trata de um ato extremo de violência como este, precisamos considerar fatores relacionais e emocionais, vínculos familiares e até Neurobiológicos que podem estar relacionados ao ato.
Pode acontecer que os vínculos familiares tenham sido construídos de forma frágil e disfuncional, na maioria das vezes alicerçadas no excesso de controle, punição, incongruência entre o cobrado e o exemplo dado e pouca escuta emocional, com diálogos muitas vezes baseados em gritos e desrespeito; comparações com outras pessoas de forma a diminuir a autoestima da criança ou adolescente. Outro fator muito citado por adolescentes atendidos, é a percepção de ausência dos pais, sendo que, mesmo quando presentes fisicamente, não há a percepção de conexão familiar.
Alguns afirmam que a percepção de afeto está condicionada ao seu desempenho.
Um ponto comum percebido é que, em grande parte, esses adolescentes não recebem adequada psicoeducação emocional, eles sentem de forma intensa a emoção, mas não conseguem nomear, identificar e nem ter mecanismos para auto regulação emocional. E toda esta energia emocional desenfreada pode se manifestar em violência.
(OBN): A imprensa costuma apontar “motivos fúteis” nesses crimes, como a proibição de sair ou o desejo de dinheiro. Mas o que a psicologia enxerga por trás dessa “futilidade”?
(VV): Na psicologia procuramos ver além do que é considerado como ‘um motivo fútil’. Até por que, na maioria das vezes, tal motivo seria apenas a ‘ponta do iceberg’. Às vezes, o ‘não’ dito pelos pais, o limite imposto, acionam gatilhos mais profundos e adoecidos. Na psicologia tentamos entender o que este ‘não’ representa emocionalmente para este adolescente. Precisamos entender se este limite pode representar um sentimento profundo de rejeição e percepção de não ser amado.
Observando o outro extremo, temos jovens que não receberam limites claros e coerentes no seio familiar, sendo acostumados a receber tudo o que querem, não aprendendo assim a lidar com frustrações.
Assim, na psicologia, não consideramos nada ‘fútil’, mas procuramos compreender como este jovem construiu crenças acerca dele mesmo, das outras pessoas e do mundo.
(OBN): Esses casos são sintomas de algo que está falhando nas famílias hoje? Onde você enxerga que começa o problema: na educação, no vínculo afetivo, no silêncio emocional?
(VV): A resposta a esta pergunta sempre será um desafio, pois trata-se de questões que envolvem um conjunto de fatores que podem inter-relacionar. Todavia, observa-se que em grande parte dos casos o problema começa nos vínculos afetivos e relacionais primários: a família, com uma presença disfuncional ou mesmo a ausência dela.
A priori, a família é a maior responsável por contribuir para que aquela criança crie ‘raiz’ emocional, de forma a controlar impulsos. E ela alcança isso quando sente o ambiente seguro, com limites claros e coerentes delimitados mas banhados em amor e presença e , acima de tudo, com exemplo. Não podemos generalizar aqui e dizer que absolutamente todos os casos de extrema violência são frutos de pais ausentes, mas a verdade é que um número considerável deles nos aponta este fator com maior relevância.
Todavia, é importante citar aqui também os importantes papéis da escola, que deve contribuir com a educação emocional, promovendo espaços de escutas com profissionais qualificados. Às vezes vemos a violência entranhada dentro dos muros da escola. Precisamos rever o modelo que prioriza os resultados e o desempenho e negligenciam a educação emocional.
E como não citar também a responsabilidade do Estado? Se ele falha em investir na prevenção, na capacitação e valorização dos profissionais da educação e da área da saúde mental, se não prioriza a criação de políticas públicas ou a sua execução, ele se torna co-responsável por tragédias como esta.
Assim, a questão é multifacetada e envolve as instituições que contribuem para a formação do ser humano: Família, escola e Estado.
(OBN): Existe um perfil psicológico comum nesses filhos que cometem crimes contra os pais, ou estamos falando de uma mistura de fatores que precisa ser investigada caso a caso?
(VV): A psicologia não parte da premissa que exista um único ‘perfil psicológico’ que explique um ato extremo de violência, como quando um adolescente mata os pais ou qualquer outra pessoa. Claro que podem existir múltiplos fatores que se repetem, mas cada caso precisa ser analisado em sua singularidade, considerando o contexto social, relacional, econômico, cultural e neurobiológicos que circundam o caso.
Mas é importante observar algumas características comuns em muitos desses perfis, como: impulsividade, agressividade, falta de empatia, desrespeito por regras, bullying ou violência escolar e outros fatores.
(OBN): Como os pais podem identificar sinais de que algo muito errado está se formando na relação com os filhos, antes que se torne um colapso ou tragédia?
(VV): Está é uma das perguntas mais relevantes. A verdade, é que antes do ato de extrema violência acontecer, por mais que os pais possam afirmar que ‘foi do nada’ ou ‘que nunca imaginavam que o filho poderia cometer tal ato’, fato é que sinais são emitidos. E que, os pais ou não sabiam o que observar ou foram negligentes na busca por ajuda.
Assim, é muito importante que os pais observem:
1. Padrão persistente de afastamento emocional e isolamento. O adolescente fica muito tempo sozinho, não quer contato com a família, e se isola de forma intensa;
2. Reações emocionais que são desproporcionais. Ou seja, alta agressividade e explosões diante de circunstâncias e situações que parecem pequenas. Este adolescente pode começar a manifestar hostilidade verbal e até física com os pais, professores e colegas.
3. É muito importante observar ainda falta de apatia ou remorso: se a criança ou adolescente ri e se diverte diante do sofrimento de outros ou animais ou se não expressa arrependimento ou remorso quando comete faltas graves com outra pessoa ou animais. Este é um sinal muito importante a ser observado.
4. É muito importante que os pais verifiquem se há mentira recorrente, mesmo quando não haveria um motivo aparente.
(OBN): Em consultório, você acredita que há espaço para abordar esse tipo de tema sem que o adolescente ou a família se sinta acusada ou constrangida? Como abrir esse diálogo?
(VV): Precisa ter este espaço. É papel do psicólogo criar este caminho com o adolescente, gerando a percepção de um espaço seguro e de acolhimento, reforçando em cada sessão o vínculo terapêutico.
Com os pais, muitos deles, já nos procuram com receio de serem culpabilizados e por isso, muitas vezes, inicialmente se fecham. É papel dos psicólogos acolhê-los e mostrar que não buscamos culpados, mas caminhos. Nos esforçamos para que eles percebam que aprendemos a educar enquanto educamos, e que embora não possamos mudar o que fizemos, podemos encontrar novos caminhos de conexão e cura familiar.
(OBN): O acesso precoce a armas e o consumo de conteúdos violentos podem intensificar esses quadros? Ou esses elementos só atuam como gatilhos para algo que já estava adoecido?
(VV): Fato é que há evidências científicas robustas de que, acesso precoce a armas e conteúdos violentos são fatores de risco que agravam causas já vulneráveis .
Cérebros adolescentes ainda estão em formação em sua estrutura e consequentemente em sua funcionalidade. Questões como ética, moral, responsabilidades por escolhas e análise de riscos, que se dão em forma mais intensa no córtex pré-frontal, só estarão maduras por volta dos vinte e cinco anos. Assim, exposição a conteúdos violentos de forma crônica, não apenas contribuirão para disfuncionalidade da formação de questões éticas e morais, como serão amplificadores de padrões de comportamentos agressivos, uma vez que o cérebro se habitua, dessensibiliza e normaliza todo estímulo na qual é exposto de forma contínua.
(OBN): Muitas pessoas se perguntam: “onde estavam os pais?” ou “o que faltou?”. Como lidar com a culpa da família sobrevivente em um caso tão traumático como esse?
(VV): Não podemos generalizar. Precisamos entender que nem todo crime cometido por adolescentes é resultado de omissão direta. Perguntas como: ‘Como eu não vi? Onde falhamos? O que deixamos de fazer?’ São comuns e muito dolorosas. Tais perguntas precisam ser acolhidas com cuidado e suporte, caso contrário, podem se transformar em culpa paralisante, depressão profunda e, em alguns casos, interrupção da vida.
É muito importante que se separe a culpa da responsabilidade. A culpa geralmente nos leva a um peso emocional paralisante. A responsabilidade nos abre para possibilidade de acerto ou reparo.
É muito importante que as famílias entendam que atos extremos de violência nunca possuem apenas um fator como causa, mas como dito, são multifatoriais e que é importante que fique claro a parte de responsabilidade que cabe a todos os atores envolvidos.
O papel do psicólogo seria ajudar esta família a compreender melhor esta complexidade, sem julgamentos, mas em acolhimento.
(OBN): Por fim, qual é a sua mensagem para famílias que enfrentam conflitos profundos com filhos adolescentes e não sabem por onde começar a reconstrução do diálogo e da confiança?
(VV):Minha mensagem é para todos os pais que, de alguma forma sentem seus filhos distantes ou com qualquer sinal citado nesta entrevista: não significa que tudo está perdido, mas que algo precisa mudar e que tal mudança não pode ser negligenciada ou adiada.
A maioria das famílias não entram em crise por falta de amor, mas quando este amor não consegue ser comunicado, quando a distância se instala, quando as emoções não são identificadas e nem expressadas. Quando os filhos gritam (ou se calam), porque não sabem como pedir ajuda e os pais se retraem por medo de falhar ou por qualquer outro motivo, é preciso, humildemente reconhecer que é momento de repensar e se necessário pedir ajuda. Muitos não sabem nem por onde começar, mas comece pelo passo mais simples, pela vontade de mudar. Precisa haver reconhecimento do problema e desejo de mudança. Deem pequenos passos: peçam desculpas quando errarem com os seus filhos, ouçam sem interrupção, procurem ver a situação conforme a perspectiva deles. Deixem que seus filhos ouçam: ‘Você não precisa acertar sempre para ser amado nesta família; eu quero muito conhecer você de novo, nesta nova fase da sua vida; nem sempre eu acerto também como sua mãe (ou seu pai), mas nunca vou desistir de tentar acertar; estarei sempre aqui…’E por favor, entendam que existem batalhas que não vencemos sozinhos, se necessário, procure ajuda de bons profissionais, que poderão andar com vocês nesta desafiadora jornada de educar um ser humano.